A Estação Ecológica da Juréia é uma bela unidade de conservação situada no litoral sul do estado de São Paulo. Mas, no início da década de 80, os planos do governo brasileiro eram de construir ali uma usina nuclear.
Era o ano seguinte ao maior acidente nuclear americano e segundo maior da história, em Three Mile Island (Pensilvânia, 1979), quando uma falha humana impediu o resfriamento normal de um reator e, a exemplo do que vemos acontecer no Japão, provocou contaminação no ar , levando à evacuação de 140 mil pessoas.
A população local reagiu e ganhou como um dos defensores de sua causa o poeta Carlos Drummond de Andrade. Naquele ano, Drummond publicaria no Jornal do Brasil um texto em que expunha as consequências aterrorizantes da energia nuclear de que se tinha conhecimento até então e convidava os deputados a refletir sobre os efeitos da radiação sobre a população que os tinha elegido.
Seis anos mais tarde, em 1986, aconteceria o pior desastre nuclear da história do mundo até o momento: o vazamento de Chernobyl, na Ucrânia.
O texto “Se eu fosse Deputado” está reproduzido abaixo, na íntegra.
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Reserva Ecológica da Juréia ©Danilo Prudência Silva
"Se eu fosse deputado federal, estaria hoje muito apreensivo. E se fosse deputado federal por São Paulo, minha apreensão atingiria limite angustioso. Isso porque me mandaram um documento terrível, que faz perder o sono e põe a consciência em estado de guerra. Quem o assina é o Movimento em Defesa da Vida, formado por pessoas de todas as classes, homens e mulheres, sob orientação de geneticistas reputados e físicos nucleares não menos categorizados da USP. Não é, pois, um desses inúmeros papéis que costumam circular por aí, sem autoria definida, reivindicando medidas declarada ou disfarçadamente políticas. Sua origem é respeitável, e seu fundo assustador.
Convidam-se os deputados a refletir nos efeitos das radiações nucleares sobre a comunidade, que elegeu esses homens como representantes e defensores dos interesses sociais brasileiros. O documento é ainda mais grave quando consideramos que sua distribuição coincide com a notícia-bomba (pois nada transpirou, até o último momento, das negociações que conduziram a uma decisão de suprema importância para a sorte da população nacional, tomada por pequeno grupo de homens do Governo e tecnoburocratas) de que serão localizadas duas usinas nucleares no litoral paulista em áres que abriga, precisamente, uma estação ecológica oficial.
O Movimento em Defesa da Vida focaliza uma só das inúmeras conseqüências letais que as usinas desse tipo ameaçam produzir. E pergunta, com base em fatos comprovados e em pesquisas fidedignas sobre contaminação radioativa no organismo humano: "Sabe V.Exa. que o leite que nossas crianças tomam poderia sofrer, na sua composição, dos efeitos radioativos produzidos nas centrais nucleares? Em 1957, na Inglaterra, um erro humano provocou o vazamento de radioatividade de um reator, igual a 1/10 da radiação liberada pela bomba de Hiroxima, e obrigou o Governo a jogar fora todo o leite produzido numa área de 500 km de distância do reator.
Para comparação: o Rio está a 133 km de Angra dos Reis. Descobriu-se no leite a presença do elemento radioativo césio-137, que se incorpora no organismo através do ciclo solo-capim-vaca-leite. O césio emite raios gama muito penetrantes e perigosos, que induzem a formações cancerosas em vários orgão."
Prossegue o documento alinhando fatos que vou resumir.
Foi verificado cientificamente que a concentração média de elementos cancerígenos no leite aumenta na proporção em que se torna mais ativa a política nuclear e diminui quando essa política se desacelera. O estrônico-90 concentra-se com medonha eficácia nas cadeias alimentares do homem; infiltra-se no solo e na água, com efeitos patogênicos sobre a população. Semelhante à do cálcio, sua estrutura se fixa nos ossos em formação das crianças, assumindo o lugar daquele.
Mas continua sendo estrônico radioativo, produzindo leu-cemia e câncer. É absorvido por inalação e contaminação de alimentos. E leva mais de 30 anos a perder a metade do seu efeito. Entre 1966 e 71, a usina de reprocessamento de Westvalley deixou escapar 45% do total de iodo-129. Isto provocou a 7 km de distância uma radioatividade 10 mil vezes maior do que a normal. E nossas usinas serão do tipo Westvalley. Tais irradiações rompem o código de reprodução, a programação genética que cada célula possui. Desequilibra as leis da vida.
Em 1969, pequeno acidente num reator do Colorado causou vazamento de partículas radioativas. Quatro anos depois, o Departamento de Saúde verificou que nas fazendas da região nasciam animais disformes. O plutônio, raro na natureza, é produzido no reator a partir do urânio. É das substâncias mais cancerígenas que existem. Inalado com o ar, instala-se nos brônquios e pulmões, emitindo raios-alfa para os tecidos vizinhos. Como o ferro, combina-se com as proteínas que transportam esse elemento no sangue. Param no fígado, nas células que armazenam ferro e na medula dos ossos. Resultado: câncer no fígado e nos ossos; leucemina. E cada reator produz por ano cerca de 250 kg de plutônio, com meia-vida de 500 mil anos!
Outra coisa: onde e como guardar eternamente o lixo atômico? Por essas e outras, os Estados Unidos e a própria Alemanha, que nos vendem usinas nucleares, não querem mais saber de novos reatores em seus territórios. Inglaterra e Suécia já paralisaram completamente seus programas nucleares. E nós? Acidentes conhecidos desmoralizaram o mito da infalibilidade das usinas nucleares.
Se o futuro é incerto, e se a ciência não pode garantir um nível de segurança que tranquilize o ser humano, a construção dessas usinas tem caráter de ameaça. Não se justifica a alegação de experiências para o progresso, a custo de vidas humanas, como ficou provado na trágica era nazista.
Se eu fosse deputado, a este hora, perderia o sono pensando nos riscos impostos ao país para nos envaidecermos de empreendimentos que buscam o chamado progresso e liquidam a segurança de viver. Mas é preciso ser deputado para sentir o peso atroz dessa ameaça? Eu, homem do povo e escrivão público, participo desse terror. E acho que o Poder Lesgislativo tem obrigação de pedir contas desse programa assustador, desenvolvido a sua revelia e sob total ignorância do povo".
Carlos Drummond de Andrade
Jornal do Brasil, 21.6.1980